Do outro lado do vidro

  Cerca de um mês e meio atrás, resolvi participar de um concurso cultural do poliedro. O tema para aqueles que estudam no 3° no do ensino médio era uma crônica.
  Não fazia ideia do que escrever, apesar de minha vontade de participar. 
  Eis que me é remetida uma imagem à mente: um mendigo estendendo a mão para um carro de luxo, com o fundo de um restaurante composto por pessoas sorrindo.
  Era impossível não escrever e desenvolver algo sobre o assunto...



   Era uma tarde de domingo.
   Pessoas saem de casa, famílias se reúnem e todos celebram a chegada de um dia sem responsabilidades, estresse ou preocupações. Todo o esforço depreendido durante árduas horas de trabalho durante a semana, agora são, enfim, recompensados com boas doses de bebidas alcoólicas, comida farta e conversas aleatórias – cada vez mais substituídas pelas mensagens instantâneas nos “celulares inteligentes”.
   Sempre assim – para certa parte da população.
   Estava eu, neste dia, passeando pelas avenidas da cidade dentro do meu carro com ar condicionado, vestindo roupas confortáveis, limpas e perfumadas com as melhores marcas de sabão em pó e amaciante da cidade, em busca de um restaurante para comemorar o tão esperado domingo.
   Passei em frente, durante o caminho, de determinado restaurante. Percebo a alegria estampada no rosto de quem tem o que comer, o que beber, o que vestir e dinheiro para comprar mercadorias – cada vez mais impostas pelos meios de comunicação a serem compradas como “chaves da felicidade”.“Selfies” são tiradas e logo postadas nas redes sociais, para que possam mostrar suas roupas de marca, em locais caros, com pessoas influentes. 
   Não sei bem se todos estavam felizes como demonstravam. Talvez o que lhes envolviam era a nostalgia do momento, do status por estarem em tal restaurante, ou simplesmente alegria por estarem longe do trabalho, o qual só desempenham para poderem comprar mercadorias e pagarem almoços em restaurantes como esse.
Esse é o mundo em que vivem: Trabalhar, ganhar muito dinheiro e comprar “para mostrar o quanto são felizes”.
   Em contraposição à essa cena, vejo um homem, negro, com cabelos emaranhados, vestido em uma roupa maltrapilha – sujas e rasgadas. Não sinto seu cheiro, pois estou fechada em meu carro com ar condicionado, meu “mundo de supérfluos”, uma bolha, na qual anomias sociais são inatingíveis. Ainda assim, sinto como se ele exalasse um cheiro equivalente a alguém que não toma banho há semanas.
   Sua pele parecia opaca, seca e enrugada pelo tempo esmagador de oportunidades. Seu corpo, magro e fraco, clamava por alimento a usar como energia para viver. Seus passos eram lentos, como de alguém já cansado pelo modo em que a vida é levada: sempre faltando algo. Seu olhar, baixo e sem esperanças, evitavam direcionar-se para o restaurante de classe econômica e social alta, que dispunha-se em suas costas e, no qual – provavelmente, por vergonha, por ser visto como um marginal, por ser encarado com desdém. Suas mãos estendiam-se para os carros imponentes, como que em vão, por saber que não conseguiria moedas suficientes para alimentar seu corpo e sua alma, já carente de dignidade. 
   Tal cena me fez pensar na alta frequência em que, provavelmente isso ocorre, sinalizando a precariedade humana que alguns sofrem, em detrimento da luxúria de pequena parcela populacional.
   Essa desigualdade social não assola somente meu país, mas todo o mundo. Era isso que mais me preocupava e mais me atormentava a cada instante que passava e meu carro direcionava-as para um local, onde eu me fecharia ainda mais em meu mundo.
  Eu não queria mais pensar nisso, mas continuar sendo inatingível a essa realidade não seria mais possível.
  Visando eliminar essa cena tão cotidiana, mas muito profunda e, de certo modo, aterrorizante, passei a imaginar como esta anomia social, de uma sociedade há muito debilitada, poderia ser curada, deixando para as futuras gerações uma sociedade saudável. 
   Talvez essa imagem seja utópica, mas, por exemplo, através da ampla instituição de educação de qualidade, no qual o desejo pelo conhecimento seja desenvolvimento desde cedo nas crianças, a meritocracia passe a existir e todos tenham iguais oportunidades de subir de classes sociais. 
   Além disso, através de uma reformulação na estrutura fundiária do país, no qual terras sejam distribuídas igualitariamente para pessoas em condições de miséria, aliada à cursos técnicos de plantio de alimentos nessa terra para famílias em condições econômicas desfavoráveis, essa camada social poderá, em família, realizar, ao menos, o plantio de alimento para sua subsistência, sendo o pequeno excedente, vendido em feiras de produtos orgânicos. Com isso, ao menos a dignidade, direito inerente a qualquer ser humano, poderia ser fornecido.
     




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